sexta-feira, 30 de maio de 2014

Sobre o Decreto nº 8.243/2014, que "institui" a Política Nacional de Participação Social

O Decreto nº 8.243, de 2014, que Institui a Política Nacional de Participação Social, mostra-se, de fato, bastante controvertido, como afirma o artigo do Estadão sobre a pretensão de mudança do regime por ato do Poder Executivo (http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,mudanca-de-regime-por-decreto,1173217,0.htm). Há diversos aspectos que apontam possível invasão de competências do Poder Legislativo, responsável pela representação do povo, nos vários níveis, como também, digo eu, do Ministério Público (em sua função de articulador de acordos e termos de ajuste de conduta, no exercício da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis e da função institucionais de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia - CF, arts. 127, caput, e 129, II). 

A redação, na qual falece a boa técnica legislativo-normativa, mereceria um capítulo à parte. Uma primeira leitura, de boa-fé, remete a boas intenções. Uma apreciação mais crítica, ao traçado de um esquema do tipo das estruturas dos famosos Partidos Comunistas da ex-União Soviética e da China, em que os membros são “cidadãos mais cidadãos que os demais”, ou, provavelmente, serão os integrantes dos órgãos institucionalizados diferentes do “povão”, que perderá força em seu voto para escolha de representantes. Avançando, há um cheiro de estratégia eleitoreira, com a construção de uma rede de cabos eleitorais, pasme-se, “oficiais”, não bastasse a ocupação de dezenas de milhares de cargos em comissão, somente na Esplanada dos Ministérios, em Brasília - DF, a trabalhar pela coalizão atualmente no Poder Executivo. Parece também desarrazoado que um mecanismo de ampla formulação de programas de governo seja deflagrado às vésperas da eleição presidencial no âmbito do Poder Executivo, quando o que caberia, no momento, seria sua apresentação como programa partidário (que, pelo visto, parece carecer de construção ou revisão). Há, por outro lado, disposições que dão margem a, digamos, “remuneração indireta” dos integrantes da rede de participação social que se pretende construir, mesmo dizendo o decreto que os serviços prestados pelos membros de conselhos, comitês etc são “voluntários", a saber: "A participação de dirigente ou membro de organização da sociedade civil que atue em conselho de política pública não configura impedimento à celebração de parceria com a administração pública. Na hipótese de parceira que envolva transferência de recursos financeiros de dotações consignadas no fundo do respectivo conselho, o conselheiro ligado à organização que pleiteia o acesso ao recurso fica impedido de votar nos itens de pauta que tenham referência com o processo de seleção, monitoramento e avaliação da parceria" (art. 10, §§ 4º e 5º do referido decreto). Assim, o “voluntário” não será, assim, tão desinteressado… (como dizia Milton Friedman, da Universidade de Chicago, “não há almoço grátis”). Bem, isso tudo sem contar que o tamanho da "estrutura" prevista já dá para antever sua inviabilidade material ou a construção de mais um tentáculo no já monstruoso Leviatã que é o aparelho do Estado brasileiro.

Quanto à natureza do Decreto, na medida em que pretende oferecer meios para que os cidadãos participem do exercício do poder do Estado, parece ofender diretamente o parágrafo único, art. 1º, da Constituição: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Portanto, o Decreto deveria se fundamentar em disposições constitucionais, expressamente identificadas, para justificar sua construção normativa, e não, apenas, a competências atribuídas ao Poder Executivo. 
A Constituição versa, sim, sobre diversas situações em que requer a participação da sociedade civil, particularmente, a seguinte: "na forma da lei (…) as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII;  III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública (art. 37, § 3º).

Outras previsões de relevo, nessa perspectiva da cidadania e da administração participativa: “nos termos da lei (…) organizar a seguridade social (…) caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados” (art. 194, parágrafo único, VII); “participação da comunidade” como diretriz para organizar "As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único” (art. 198, III); “da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”, na organização das “ações governamentais na área da assistência à saúde” (204, II); “democratização dos processos decisórios com participação e controle social”, como um dos princípios para condução do Sistema Nacional de Cultura (216-A, X); na promoção de "programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais”; "pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade” ( 230); na gestão de Fundos de Combate à Pobreza, por “entidades que contem com a participação da sociedade civil”, com os recursos resultantes da desestatização de empresas (ADCT, art. 82).

Muitas dessas prescrições exigem que as formas de participação social sejam construídas de acordo com a “lei" (que não é “decreto”, cuja função é precipuamente regulamentadora da norma legal, quando a Constituição a exige. Aliás, o decreto não pode ser usado para ampliação das competências do Poder Executivo, o que novamente configura invasão das atribuições exclusivas do Legislativo. Conclui-se, assim, que a invasão de competência se dá, também, materialmente, porque o decreto avança para “instituir um programa nacional" e disciplinar essas formas de participação social, quando, na verdade, o mais apropriado seria que a proposta fosse enviada, como projeto de lei, ainda que de iniciativa da Chefe do Poder Executivo federal, ao Congresso Nacional, para apreciação com envolvimento dos representantes de todo o povo brasileiro. Não sendo assim, comete-se as maiores das inconstitucionalidades, no caso, que é a de usurpar, do povo, seu direito ao exercício do poder, e de substituir-se o Executivo à Constituição, ao operar tamanha e desmesurada ofensa à nossa Lei Fundamental. 

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